quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

O cérebro de Putin (Foreign Affairs)

(Presidente russo Vladimir Putin em 2007 - Reuters)

          O artigo a seguir foi publicado em 31 de março de 2014 no site da Foreign Affairs, a principal revista de relações internacionais no mundo e editada pelo Conselho de Relações Exteriores (CFR, en inglês) dos EUA. Ele aborda a trajetória pessoal do filósofo e ideólogo russo Alexander Dugin no contexto do fim da URSS até os dias de hoje, o desenvolvimento de sua filosofia e a formulação do neoeurasianismo, ideologia combina o eurasianismo clássico do início do século XX e a geopolítica com elementos nazi-fascistas, religiosos, místicos e ocultistas. Por fim, o texto encerra com o uso pelo governo Putin de seu pensamento e a estrutura criada por Dugin para divulgar suas ideias, como o Movimento Eurasiano.

          A publicação do artigo visava compreender as motivações das ações da Rússia na Ucrânia e no mundo. De 25 para 26 de fevereiro de 2014, forças militares russas iniciaram a tomada da Crimeia, e seguida por um referendo em 16 de março que aprovou a anexação pela Rússia, ratificada por Putin no dia 18. Uma semana depois do artigo, em 7 de abril, se iniciaria o levante armado pró-Rússia nas regiões de Donetsk e Luhansk, cujo conflito matou pouco mais de 10 mil pessoas até o momento.

          Mantive a foto original (acima) e os links de referência publicados no texto e fiz algumas observações no final. A tradução é minha. 

          Boa leitura.

          O cérebro de Putin
       
          Alexander Dugin e a filosofia por trás da invasão da Crimeia de Putin.

          Por Hannah Thoburn e Anton Barbashin (1)

          Desde o colapso na União Soviética, a Rússia tem buscado infrutiferamente por uma nova grande estratégia - algo que defina quem são os russos e para onde eles estão indo. "Na história russa durante o século XX, houve vários períodos - monarquismo, totalitarismo, perestroika e, finalmente, um caminho democrático de desenvolvimento," disse o presidente russo Boris Yeltsin dois anos após o colapso da União Soviética. "Cada estágio tem sua própria ideologia," continuou, mas agora "nós não temos." 

          Para preencher este vazio, em 1996 Yeltsin designou um time de acadêmicos para trabalharem juntos para encontrar o que os russos chamam de Russkaya ideya ("ideia russa"), mas eles voltaram de mãos vazias. Ao mesmo tempo, vários outros grupos também assumiram a tarefa, incluindo uma coleção de políticos e pensadores russos conservadores que chamavam a si mesmos de Soglasiye vo imya Rossiya ("Acordo em Nome da Rússia"). Juntamente com muitos outros intelectuais russos da época, eles estavam profundamente perturbados com a fraqueza do estado russo, algo que acreditavam que precisava ser arrumado para que  a Rússia retornasse à sua glória legítima. E para eles, isso implicava no retorno à tradição russa de um governo central poderoso. Como isso poderia ser realizado era uma questão para outra ocasião.

          Putin, com quem muitos dos Soglasiye ainda têm laços, concordou com seus ideais e objetivos gerais. Ele chegou ao poder em 1999 com um mandato nacional para estabilizar a economia e o sistema político russos. Graças ao aumento dos preços globais de energia, ele rapidamente atingiu este objetivo. No final dos anos 2000, ele tinha espaço para retornar à questão da ideia russa. A Rússia, começou a argumentar, era uma civilização única própria. Ela não poderia ser feita para se encaixar confortavelmente nos blocos europeu e asiático e tinha que viver por suas próprias e exclusivas leis e moral russas. E, com a ajuda da Igreja Ortodoxa Russa, Putin começou uma batalha contra os elementos liberais (ocidentais) que alguns segmentos da sociedade russa começaram a adotar. As atitudes dele que receberam condenação no Ocidente - como a criminalização da "propaganda homossexual" e a sentença de membros da Pussy Riot, um coletivo feminista de punk-rock, a dois anos de prisão foi vandalismo - eram populares na Rússia.

          Fiel à insistência de Putin de que a Rússia não pode ser julgada em termos Ocidentais, seu novo conservadorismo não se encaixa nas definições americana e europeia. Na verdade, a principal característica que eles compartilham é a oposição ao liberalismo. Enquanto que os conservadores nessas partes do mundo são temerosos do governo grande e põe o indivíduo em primeiro lugar, os conservadores russos advogam pelo poder do Estado e veem os indivíduos como servindo esse Estado. Eles se baseiam na longa tradição do conservadorismo imperial russo e, em particular, no eurasianismo. Esta corrente é autoritária em essência, tradicional, antiamericana e antieuropeia; valoriza a religião e a submissão pública. E, mais importante para os noticiários de hoje, é expansionista.

          As raízes do eurasianismo residem na Revolução Bolchevique da Rússia, embora muitas das ideias que contém têm histórias muito mais antigas. Depois da Revolução de Outubro de 1917 e da guerra civil que se seguiu, dois milhões de russos anti-bolcheviques fugiram do país. De Sofia para Berlim e então Paris, alguns desses intelectuais russos exilados trabalharam para criar uma alternativa ao projeto bolchevique. Uma dessas alternativas eventualmente se tornou a ideologia eurasiana. Os proponentes desta ideia postularam que os ocidentalizadores e os bolcheviques da Rússia estavam errados; os ocidentalizadores por acreditarem que a Rússia era uma parte (atrasada) da civilização europeia e por pedirem pelo desenvolvimento democrático; os bolcheviques por presumirem que todo o país precisava de uma reestruturação através do confronto de classe e de uma revolução global da classe trabalhadora.

          Em vez disso, os eurasianos destacavam que a Rússia era uma civilização única com seu caminho e missão histórica próprios: criar um centro de poder e cultura diferentes que não fosse nem europeu, nem asiático mas que tenha traços de ambos. Os eurasianos acreditavam na eventual queda do Ocidente e que era hora da Rússia ser o principal exemplo do mundo.

          Em 1921, os pensadores exilados George Florovsky, Nikolai Trubetzkoy, Petr Savitskii e Petr Suvchinsky publicaram uma coleção de artigos intitulados Exodus to the East, que marcou o nascimento oficial da ideologia eurasiana. O livro centrou-se na ideia de que a geografia da Rússia é seu destino e que não há nada que qualquer governante possa fazer para se libertar das necessidades de defender suas terras. Devido à vastidão da Rússia, eles acreditavam, seus líderes precisam pensar imperialmente, consumindo e assimilando as populações perigosas em todas as fronteiras. Enquanto isso, eles consideravam qualquer forma de democracia, economia aberta, governança local ou liberdade secular como altamente perigosa e inaceitável.

          Neste sentido, os eurasianos consideravam Pedro, o Grande - que tentou europeizar a Rússia no século XVIII - um inimigo e um traidor. Em vez disso, ele viam favoravelmente o domínio tártaro-mongol, entre os séculos XIII e XV, quando o império de Genghis Khan havia ensinado os russos ensinamentos cruciais sobre a construção de um estado forte e centralizado e um sistema piramidal de submissão e controle.

          As crenças eurasianas ganharam um forte seguimento na parte politicamente ativa da comunidade emigrante, ou Russos Brancos, que estavam ansiosos para promover qualquer alternativa ao bolchevismo. Entretanto, a filosofia foi totalmente ignorada, e mesmo suprimida pela União Soviética, e praticamente morreu com seus criadores. Ou seja, até a década de 1990, quando a União Soviética desmoronou e a atmosfera ideológica da Rússia estava vazia.

A EVOLUÇÃO DE UM REVOLUCIONÁRIO

          Depois do colapso da União Soviética, ideologias ultranacionalistas estavam decididamente fora de moda. Em vez disso, a maioria dos russos aguardava ansiosamente a democratização e a reintegração da Rússia com o mundo. Ainda assim, restaram poucos elementos profundamente patrióticos que se opunham à dessovietização e acreditavam - como Putin hoje acredita - que o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século. Entre eles estava o ideólogo Alexander Dugin, que era um contribuinte regular do centro analítico ultranacionalista e jornal Den´ (mais tarde conhecido como Zavtra). Sua primeira aparição à fama foi um panfleto de 1991, A Guerra dos Continentes (2), no qual ele descrevia uma permanente luta geopolítica entre dois tipos de poderes globais: os poderes terrestres, ou "Roma Eterna", que são baseados nos princípios de estatismo, comunalidade, idealismo e a superioridade do bem comum, e as civilizações do mar, ou "Cartago Eterna", que são baseadas no individualismo, no comércio e no materialismo. No entendimento de Dugin, a "Cartago Eterna" era historicamente representada pela democracia ateniense e pelos impérios holandês e britânico. Agora, ela é representada pelos Estados Unidos. A "Roma Eterna" é representada pela Rússia. Para Dugin, o conflito entre os dois continuará até que um deles seja completamente destruído - nenhum tipo de regime político e nenhuma quantidade de comércio pode parar isto. E para que o "bom" (Rússia) acabe por derrotar o "mau" (Estados Unidos), escreveu ele, deve haver uma revolução conservadora. 

          Suas ideias de uma revolução conservadora são adaptadas dos pensadores alemães do entreguerras, que promoveram a destruição da ordem liberal individualista e a cultura comercial da civilização industrial e urbana em favor de uma nova ordem baseada em valores conservadores como a submissão das necessidades e dos desejos individuais às necessidades de muitos, uma economia organizada pelo Estado e valores tradicionais para a sociedade baseadas numa visão quase religiosa do mundo. Para Dugin, o principal exemplo de uma revolução conservadora foi a radical República Social Italiana de Salò (1943-45) apoiada pelos nazistas no norte da Itália. Na verdade, Dugin retornou  continuamente ao que viu como virtudes das práticas nazistas e expressou apreço pela SS e o grupo ocultista Ahnerbe de Herman Wirth. Em particular, Dugin elogiou os projetos conservadores-revolucionários ortodoxos que a SS e o Ahnerbe desenvolveram para a Europa do pós-guerra, nos quais imaginavam uma Europa nova e unificada, regulada pelo sistema feudal de regiões etnicamente separadas que serviriam de vassalos aos suseranos alemães. É importante destacar que, entre outros projetos, o Ahnerbe era responsável por todos os experimentos com seres humanos no campos de concentração de Auschwitz e Dachau.

          Entre 1993 e 1998, Dugin se juntou à lenda nacionalista russa Eduard Limonov na criação do agora banido Movimento Nacional-Bolchevique (mais tarde o Partido Nacional-Bolchevique, ou PNB), onde eles se tornou o principal ideólogo de uma estranha síntese de socialismo e ideologia ultradireitista. No final dos anos 1990, ele foi reconhecido com o líder intelectual de todo o movimento ultradireitista da Rússia. Ele tinha sua própria editora, Arktogeya ("País do Norte"), vários sites, uma série de jornais e revistas, e publicou As Fundações da Geopolítica (3), um súbito bestseller que se tornou particularmente popular entre os militares.

          A introdução de Dugin na política convencional veio em 1999, quando ele se tornou conselheiro do parlamentar russo Gennadii Seleznev, um dos políticos mais conservadores da Rússia, por duas vezes presidente do parlamento russo, membro do Partido Comunista e fundador do Partido do Renascimento da Rússia. Neste mesmo ano, com a ajuda de Vladimir Zhirinovsky, líder nacionalista da Rússia e do muito mal nomeado Partido Democrático Liberal da Rússia, Dugin se tornou presidente da seção geopolítica do Conselho Consultivo sobre Seguração Nacional da Duma.

          Mas sua inclusão na política não se traduz necessariamente num maior apelo nas políticas da elite. Para isso, Dugin teve de transformar sua ideologia em algo mais - algo singularmente russo. Ou seja, ele eliminou os elementos mais escandalosos, esotéricos e radicais de sua ideologia, incluindo seu misticismo, e em vez disso se baseou no eurasianismo clássico de Trubetzkoy e Savitskii. Ele começou a trabalhar criando o Movimento Eurasiano Internacional, um grupo que viria a envolver acadêmicos, políticos, parlamentares, jornalistas e intelectuais da Rússia, de seus vizinhos e do Ocidente.

PARA A EUROPA E ALÉM

          Como os eurasianos clássicos das décadas de 1920 e 1930, a ideologia de Dugin é antiocidental, anti-liberal, totalitária, ideocrática e socialmente tradicional. Seu nacionalismo não é eslavo-orientado (embora os russos tenham uma missão especial de unir e liderar), mas também se aplica às outras nações da Eurásia. E rotula o racionalismo como ocidental e assim promove uma visão de mundo mística, espiritual, emocional e messiânica.

          Mas o neoeurasianismo de Dugin difere significativamente do antigo pensamento eurasiano. Primeiro, Dugin concebe a Eurásia como sendo muito maior do que seus predecessores jamais imaginaram. Por exemplo, enquanto Savitskii acreditava que o estado russo-eurasiano deveria se estender da Grande Muralha da China no leste até os Montes Cárpatos no oeste, Dugin acredita que o estado eurasiano deve incorporar todo os antigos estados soviéticos, membros do bloco socialista e talvez mesmo estabelecer um protetorado sobre todos os membros da UE (4). No leste, Dugin propõe ir até a Manchúria, o Xinjiang, o Tibet e a Mongólia. Ele ainda propõe eventualmente que se volte ao sudoeste em direção ao Oceano Índico.

          Para incluir a Europa na Eurásia, Dugin teve de retrabalhar o inimigo. No pensamento eurasiano clássico, o inimigo era a Europa romano-germânica. Na versão de Dugin, o inimigo é os Estados Unidos. Como escreve: "Os EUA são uma cultural quimérica, anti-orgânica e transplantada que não possui as tradições do estado sacro e do solo cultural, mas, no entanto, tenta impor nos outros continentes seu modelo anti-étnico, anti-tradicional [e] babilônico." Os eurasianos clássicos, ao contrário, favoreciam os Estados Unidos e o consideravam até mesmo um modelo, elogiando especialmente seu nacionalismo econômico, a Doutrina Monroe e a sua não associação na Liga das Nações.

          Outro pronto crucial de diferença é sua atitude em relação ao fascismo e a Alemanha nazista. Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, os eurasianos clássicos se opunham ao fascismo e se posicionaram contra o antissemitismo racial. Dugin elogiou o Estado de Israel por aderir aos princípios do conservadorismo, mas também falou de uma conexão entre o sionismo e o nazismo e sugeriu que os judeus só mereceram seu Estado devido ao Holocausto. Ele também divide os judeus em "maus" e "bons". Os bons são ortodoxos e vivem em Israel; os maus vivem fora de Israel e tentam assimilar. Obviamente, nos dias hoje, estes são pontos de vista aos quais ele raramente alude em público.

JOGO DE PUTIN

          Desde o início dos anos 2000, as ideias de Dugin apenas têm ganho popularidade. Sua ascensão reflete a própria transição de Putin de aparente democrata para autoritário. Na verdade, a virada conservadora de Putin deu a Dugin uma chance perfeita de "ajudar" o líder russo com explicações históricas, geopolíticas e culturais apropriadas às suas políticas. Reconhecendo o quão atraentes são as ideias de Dugin para alguns russos, Putin tomou algumas delas para promover seu próprios objetivos.

          Embora de tempos em tempos Dugin tenha criticado Putin por seu liberalismo econômico e sua cooperação com o Ocidente, ele geralmente tem sido o firme aliado do presidente. Em 2002, ele criou o Partido Eurásia, que foi bem recebido por muitos na administração de Putin. O Kremlin há muito tolerou, e mesmo encorajou, a criação de pequenos partidos políticos aliados menores, que dão aos eleitores russos a sensação de que eles realmente vivem numa democracia. O partido de Dugin, por exemplo, fornece um espaço para aqueles com inclinações chauvinistas e nacionalistas, mesmo que o partido permaneça controlado pelo Kremlin. Ao mesmo tempo, Dugin criou fortes laços com Sergei Glazyev, co-líder do bloco patriótico Rodina e atualmente conselheiro de Putin sobre a integração eurasiana. Em 2003, Dugin tentou se tornar deputado parlamentar pelo bloco Rodina, mas falhou.

          Embora sua incursão eleitoral tenha sido um fracasso, a recepção positiva de alguns eleitores a seus projetos antiocidentais encorajou Dugin a prosseguir com o movimento eurasiano. Depois do impacto da Revolução Laranja da Ucrânia em 2004, ele criou a União da Juventude Eurasiana, que promove educação patriótica e antiocidental. Ela possui 47 escritórios de coordenação por toda a Rússia e nove em países da Comunidade do Estados Independentes, Polônia e Turquia. Seu alcance é muito superior ao de qualquer outro movimento pró-democrático existente.

          Em 2008, Dugin se tornou um professor da melhor universidade da Rússia, a Universidade Estatal de Moscou, e chefe da organização sociológica nacional Centro de Estudos Conservadores. Ele também aparece regularmente em todos os principais canais de TV da Rússia, comentando sobre questões domésticas e estrangeiras. Sua exposição só aumentou desde os protestos pró-democracia do inverno 2011-12 e da ação de Putin em torno da mesma época ao criar a União Eurasiana. Sua presença generalizada na vida pública russa é um sinal da aprovação de Putin: a mídia russa, particularmente a televisão, é quase totalmente controlada pelo Kremlin. Se o Kremlin desaprova (ou não utiliza mais) uma pessoa em particular, ele o removerá das transmissões televisivas.

          Dugin e outros pensadores com ideias semelhantes apoiaram de todo o coração a ação do governo russo na Ucrânia, pedindo para ir além e tomar o leste e sul ucraniano, que, escreve ele, "congratula-se com a Rússia, espera por ela, pede para que a Rússia venha." O povo russo concorda. Os índices de aprovação de Putin saltaram no último mês [março de 2014], e 65 por cento dos russos acreditam que a Crimeia e as regiões orientais da Ucrânia são "territórios essencialmente russos" e que a "Rússia está certa em utilizar a força militar para defender a população." Dugin, então, provou ser um ótimo recurso para Putin. Ele popularizou a posição do presidente em questões como os limites à liberdade pessoal, uma compreensão tradicional da família, a intolerância à homossexualidade e a centralidade do cristianismo ortodoxo no renascimento da Rússia como uma grande potência. Mas a sua maior criação é o neoeurasianismo.

          A ideologia de Dugin influenciou toda uma geração de ativistas conservadores e radicais e políticos, que, se tivessem a chance, lutariam para adaptar seus princípios fundamentais à política de Estado. Considerando a pobre situação da democracia russa e o contínuo afastamento do país de ideias e ideais ocidentais, pode-se dizer que as chances de ver o neoeurasianismo conquistar novo terreno está crescendo. Embora a fórmula de Dugin seja altamente teórica e profundamente mística, ela está provando ser uma forte concorrente para o papel de principal ideologia da Rússia. Se Putin pode controlá-la, assim como controlou muitas outras fórmulas, é uma questão que pode determinar sua durabilidade.

* Traduzi o adjetivo "eurasianist" como "eurasiano" para simplificar a tradução. 
(1) Analistas do Eurasia, da Foreign Policy Initiative
(2) O panfleto virou livro com o título A Grande Guerra dos Continentes.
(3) Não há o livro em português. Em inglês está pelo título Foundations of Geopolitics.
(4) O vídeo que estava marcado neste trecho foi retirado do Youtube. Mas neste outro vídeo Dugin afirma, de forma direta, que a Rússia deveria anexar a Europa. Diz ele, a partir de 1:06: "...nós precisamos ocupar a Europa, conquistar e anexar." 


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

O filósofo mais perigoso do mundo (por Paul Ratner)

(Dugin manejando um lançador de foguetes na Ossétia do Sul, Geórgia, pouco antes da Guerra Russo-Georgiana em agosto de 2008.)

         O texto a seguir foi escrito em 2016 pelo escritor e cineasta Paul Ratner, contribuinte do site Big Think, e discute as ideias do filósofo russo Alexander Dugin. A importância do texto está no destaque que Ratner dá ao conteúdo escatológico da filosofia de Dugin e os paralelos entre seu pensamento e os últimos acontecimentos da política russa. Segundo o autor, o governo Putin está colocando em prática as ideias do filósofo, razão pela qual considera que "é difícil não levar as ideias de Dugin a sério".

          Mantive os links de referência e as fotos originais publicadas no texto e fiz alguns observações no final. A tradução é minha. 

          Boa leitura.

       O filósofo mais perigoso do mundo

        As relevações sobre o envolvimento da Rússia no hackeamento dos funcionários do Partido Democrata, com a intenção de fazer Trump vencer Hillary, adicionou mais combustível a um ciclo eleitoral já exaustivo e extenuante. Por que a Rússia faria isso, especialmente já que se revelou que o presidente russo Vladimir Putin provavelmente estava dirigindo pessoalmente a operação? Entre com Alexander Dugin, o cientista político conhecido como "Rapustin de Putin" ou "Cérebro de Putin", bem como um fascista ocultista. Ele é também um professor de sociologia na prestigiosa Universidade Estatal de Moscou*, um escritor prolífico, um assessor de figuras-chave de membros política e do meio militar e um articulador de uma filosofia nacionalista sancionada pelo Kremlin
          
          Ele também esteve na lista de sanções americanas após a aquisição da Crimeia pela Rússia, por defender o assassinato de ucranianos, entre outras coisas.**

        Não que Dugin seja pessoalmente responsável pelos hackeamentos, que atualmente são explicados como uma vendeta pessoal de Putin contra Clinton. Mas a influente filosofia de Dugin se alinha muito bem com o que parece ter acontecido e oferece uma excelente abordagem sobre o tema e em futuros conflitos com a Rússia. Provavelmente há motivos muito mais profundos por trás das ações russas.

          Alexander Dugin é ao mesmo tempo sociólogo, historiador e filósofo. Você pode encontrar várias de suas exposições on-line no Youtube, embora ajudaria se você soubesse russo. Ele mesmo fala dez línguas. Entre suas muitas opiniões controversas, ele expressou visões profundamente anti-científicas, pedindo a proibição da química e da física. Ele também se livraria da internet***, uma visão anti-tecnológica que, em última análise, decorre do seu desejo de dar um fim no mundo como o conhecemos.  

(Crédito: Dugin.ru)

        O que ele propõe é que havia três principais teorias políticas que impactaram o mundo no passado relativamente recente - o capitalismo liberal ou "liberalismo", o comunismo e o fascismo. De acordo com Dugin, os EUA são o líder do liberalismo, o qual oferece liberdade, uma abordagem racionalista e uma concorrência de mercado.

        Embora o liberalismo tenha sido a ideologia vitoriosa até agora, triunfando sobre o fascismo em 1945 e o comunismo em 1991 (quando a URSS se dissolveu), Dugin pensa que agora ele também experimenta uma crise fatal. Ele acredita que os próprios liberais seriam os primeiros a afirmar isto. Dugin considera que o liberalismo está próximo de um beco sem saída, atolado atualmente num "estágio pós-moderno niilista" porque está tentando se libertar do pensamento racional e da opressão do cérebro, que para um liberal é "algo fascista em si". Dugin dá um passo além, afirmando o liberalismo de hoje como algo que está tentando libertar os órgãos do corpo do controle do cérebro, aludindo à sua aceitação pela comunidade LGBT. 

          Aqui está como ele explica esse racioncínio:
"O liberalismo insiste na liberdade e na libertação de qualquer forma de identidade coletiva. Esta é a própria essência do liberalismo. Os liberais tem libertado o ser humano da identidade nacional, da identidade religiosa e assim por diante. O último tipo de identidade coletiva é o gênero. Então, há tempo de aboli-lo fazendo-o arbitrário e opcional".
          O que Dugin propõe em vez do que ele vê como três ideologias mortas e moribundas é sua "Quarta Teoria Política". Ela criaria um modelo político totalmente alternativo, contra o "progresso" da história mundial tal como é. Não seria baseada nas questões de individualismo, nação ou nacionalismo. Dugin vê essa teoria como parcialmente baseada no trabalho do filósofo existencial alemão Martin Heidegger, controverso com sua associação com o nazismo. Sua filosofia apresenta uma raiz da autoconsciência humana (chamado por Heidegger de dasein) a ser salva no mundo, já que tem sido diluída pelo espaço moderno pela tecnologia essencialmente desumanizadora.

          Já que essa raiz do ser difere de pessoa a pessoa e de cultura para cultura, o mundo deveria ser caracterizado por uma divisão de poder multipolar, ao contrário de uma superpotência nos EUA. Encontrar uma maneira de implementar uma forma tão nova de ver o mundo, segundo Dugin, seria retornar a um senso de identidade que os humanos têm perdido em todo o mundo.

          Dugin contrasta sua teoria de um mundo multipolar com o que ele (e teóricos da conspiração no mundo inteiro) vê como uma movimento em direção à criação de um "governo mundial" liderado por "elites globalistas" dissimuladas, que estão dispostas a privar as pessoas de um senso de identidade e subjugá-las às suas necessidades corporativas.

          Neste mundo de um certo número de superpotências regionais, qual seria o papel da Rússia? Dugin vê a Rússia como a nação líder na União Eurasiana e fundou o Movimento Eurasiano Internacional para alcançar este objetivo.

          O que é a Eurásia? Basicamente, é o território da antiga União Soviética. Dugin pensa que a União Soviética apenas tomou de volta as fronteiras de uma histórica união de povos e etnias que estavam lá desde o Império Russo. Como a Rússia é um país de cultura e destino únicos, é sua missão criar um centro de poder que tenha elementos da Europa da Ásia, os dois continentes abraçados pela expansividade do país.
"O Ocidente sabe pouco ou nada sobre a real história da Rússia. Às vezes eles pensam que a União Soviética era puramente uma criação comunista e estados como Ucrânia, Cazaquistão ou Azerbaijão eram independentes antes da URSS e foram conquistados pelos bolcheviques ou forçados a entrar no estado soviético," diz Dugin. "O fato é que eles nunca existiram ou representaram como tais, mas como distritos administrativos sem qualquer significado político ou cultural dentro do Império Russo, bem como dentro da URSS. Estes países foram criados artificialmente em suas atuais fronteiras apenas depois do colapso da URSS e como resultado deste colapso".  
          Assim, o objetivo do estabelecimento da União Eurasiana seria essencialmente corrigir um erro histórico e trazer de volta um império bem sucedido que existiu ainda antes da União Soviética. A recente aquisição da Crimeia pela Rússia e demais projetos na Ucrânia parecem ser uma parte lógica de tal plano.

          Dugin vai ainda mais fundo em sua muito controversa análise histórica, afirmando que o atual oponente da Eurásia não é apenas os Estados Unidos, mas o Atlanticismo, o eixo de cooperação entre Europa, EUA e Canadá que cruza o Oceano Atlântico. Essas nações marítimas e liberais valorizam a individualidade e as forças de mercado.         

          A Eurásia, por outro lado, representa a filosofia conservadora do continentalismo terrestre, que de acordo com os eurasianistas tem entre seus valores a estrutura hierárquica, a lei e a ordem, o tradicionalismo e a religião.

          Portanto nós temos Atlantis versus Eurásia. De fato, Dugin afirma que toda a história pode ser vista como uma batalha entre as nações marítimas e terrestres.     

        O que Dugin pensa sobre a vitória de Trump? Ele esteve muito entusiasmado com Trump ao longo de todo o processo eleitoral, para dizer o mínimo, descrevendo-o desta forma para destacar porque Trump é uma "sensação" que pode enfrentar as elites globalistas:
"[Donald Trump] é difícil, grosseiro, fala o que pensa, rude, emocional e, aparentemente, sincero. O fato de que ele é bilionário não importa. Ele é diferente. Ele é um americano comum extremamente bem sucedido..."  

          Dugin acha que a vitória de Trump é um golpe monumental contra os "globalistas", cuja candidata era Hillary Clinton - a mesma linguagem que você pode facilmente encontrar em apimentados sites americanos conservadores como Breitbart News, Drudge Report e o rei da conspiração Alex Jones (um dos favoritos de Dugin). Ele acha que a vitória de Trump foi um tipo de "revolução" iniciada pelo povo americano e deve levar a derrotas mundiais da agenda globalista, drenando o proverbial "pântano" em todo o mundo.   

          Entretanto, Dugin não para aí. Suas visões sobre qual é o significado da vitória de Trump implicam em mergulhar numa mudança apocalíptica e civilizacional:
"Nós precisado retornar ao Ser, ao Logos, à ontologia fundamental (de Heidegger), ao Sagrado, à Nova Idade Média - e portanto ao Império, à religião e às instituições da sociedade tradicional (hierarquia, culto, domínio do espírito sobre a matéria e assim por diante). Todo o conteúdo da modernidade é Satanismo e degeneração. Nada tem valor, tudo está para ser eliminado. A Modernidade está absolutamente errada - ciência, valores, filosofia, arte, sociedade, modas, modelos, 'verdades', compreensão do Ser, do tempo e do espaço. Tudo está morto com a Modernidade. Portanto ela deve acabar. Nós vamos acabar com isso."
          Está certamente não seria a primeira vez na história recente que um russo pensou que tudo está errado e que o mundo precisa ser completamente purgado. Nós sabemos como isso terminou. E os elementos sobrenaturais de algumas coisas que Dugin está dizendo, junto com sua barba, talvez mereçam a comparação com Rasputin. Mas Dugin acredita que medidas concretas deveriam ser tomadas para realizar sua visão de mundo? 

          Curiosamente, antes da vitória de Trump, influentes porta-vozes conservadores americanos, como a National Review, estavam alertando para as intenções da Rússia, destacando especificamente a ameaça que a ideologia de Dugin representava, chamando o eurasianismo de "um culto satânico". Agora que Trump venceu e que a Rússia estava implicada na interferência eleitoral, eles não estão tão interessados em abordar esta questão.

          Será que Putin realmente ouve Dugin. Acadêmicos e comentaristas dizem que sua ideias são levadas à sério por pessoas no círculo de Putin e sua crescente popularidade coincide com o autoritarismo e as ações em andamento de Putin. Notavelmente, em 2008 Dugin veio em apoio à tomada da Geórgia pelas tropas russas e se inflamou durante o conflito Rússia-Ucrânia de 2014, pedindo pelo massacre de ucranianos e a anexação de terras ucranianas que eram parte do antigo Império Russo.

          Para saber o que Dugin deve especificamente defender, podemos olhar seu livro mais vendido "O Fundamento da Geopolítica" de 1997, que teve particular sucesso entre os militares russos e de acordo com a Foreign Policy (e as próprias palavras de Dugin) é designado para leitura nas universidades militares russas.       

          O livro descreve uma perspectiva para a Rússia no século XXI que levaria à formação da Eurásia, mas também inclui estratégias específicas para derrotar ou neutralizar os EUA. Estas incluem campanhas de desestabilização e desinformação utilizando as forças especiais russas e a guerra assimétrica, dividindo as alianças entre os EUA e países como Alemanha e França, bem como a fermentação da divisão dentro do próprio país, destacando especialmente as relações raciais. Na página 367 da primeira edição do livro, Dugin explica:     
"É especialmente importante introduzir desordem geopolítica dentro da atividade interna americana, encorajando todos os tipos de separatismos e conflitos étnicos, sociais e raciais, apoiando ativamente todos os movimentos dissidentes - grupos extremistas, racistas e sectários, desestabilizando, portanto, os processos políticos internos nos EUA. Também fazeria sentido apoiar simultaneamente as tendências isolacionistas na política americana..." 
          Depois de nossas eleições hiper-divisivas, cheia das calamidades descritas acima, diante de uma investigação cada vez mais aberta sobre interferência russa em nossa mais estimada instituição democrática, é difícil não levar à sério as ideias de Dugin. Com a vitória de Trump, Dugin recuou um pouco em pintar os EUA como inimigo número um. Também foi relatado que o relacionamento entre Dugin e Putin pode ter esfriado recentemente, com Dugin criticando Putin por ser "muito lento" em realizar sua visão de mundo. Mas, olhando os fatos com os pés no chão, é possível concluir que Putin ainda pode estar jogando um longo jogo orientado à Eurásia, que não vai se encerrar apenas nos embaraçosos e-mails do Wikileaks. Especialmente à luz do fato de que agora os EUA se encontram numa posição vulnerável, buscando por uma filosofia unificadora e por um caminho a seguir.

          Aqui está um artigo sobre Dugin e seu livro feito por John B. Dunlop do Hoover Institution. Se você sabe russo, você pode ler o livro aqui.     

* No site Academia.edu, Dugin apresenta-se como membro da universidade.

** Também consta na lista ampliada de sanções do Canadá publicada em 2015. Em maio de 2016, ele chegou a ser barrado de entrar na Grécia, território da União Europeia, a pedido de autoridades húngaras, mas logo foi liberado. Dugin não está na lista de sanções do bloco.

*** De acordo com uma reportagem publicada pela agência de notícias BalticInfo através de sua filial em São Petersburgo, numa palestra realizada nesta cidade em junho de 2012 Dugin declarou, para espanto da platéia, que "se nós quisermos dar um fim no Ocidente, temos que dar um fim nos textos de química e física". Sobre a internet, o filósofo russo afirmou que "uma pessoa envolvida numa rede, e não numa organização territorial, torna-se um cidadão do mundo depois de usar a internet". De acordo com o jornalista Vladislav Golyanov, autor da reportagem, a palestra de Dugin versou sobre o confronto entre o Ocidente e os Estado nacionais, e suas declarações sobre as ciências e a internet ocorreu dentro de uma perspectiva religiosa. Disso se deduz que as ciências química e física e a internet devem ser combatidas no contexto da guerra contra o Ocidente. (O texto do link está traduzido do russo para o inglês pelo Google Translator.)